O caos urbanístico que alastrou por todo o país, só nos últimos quinze anos, vicejou ao abrigo da Lei. Os grandes horrores urbanísticos ...
Entrevista ao jornal “Expresso”
Pedro Bingre do Amaral
17 de Outubro de 2005
http://mail.google.com/mail/?realattid=0.3&attid=0.3&disp=vah&view=att&th=110b2feb3570febf
Caos urbanístico em Portugal:
escolha política ou fatalidade cultural?
EXPR: Acha que a actual legislação sobre urbanismo e planeamento é
adequada?
PBA: Uma árvore avalia-se pelos seus frutos. O valor de uma Lei urbanística
deve avaliar-se não apenas pela óptica puramente jurídica, mas também pelos
resultados que produz no terreno. O caos urbanístico que alastrou por todo o país,
sobretudo nos últimos quinze anos, vicejou ao abrigo da Lei. Os grandes horrores
urbanísticos dos subúrbios de Lisboa e Porto são na sua imensa maioria legais. O
estado devoluto das centenas de milhares de habitações retidas em açambarcamento
especulativo é legal. O abandono a que está votado 1/3 do espaço agro-florestal do
país é legal. O loteamento e a urbanização de enormes subúrbios, em quantidades e
preços desajustados à sociedade portuguesa são legais. A péssima qualidade
arquitectónica e urbanística das expansões urbanas é legal. É legal, apesar de imoral, a
especulação desenfreada sobre o solo urbanizável, que chama a si até metade do preço
final dos edifícios. Em suma: o planeamento urbanístico e o ordenamento do território
que resultam desta legislação não são nada brilhantes. Os inúmeros planos de
ordenamento do território (regionais, municipais, especiais, &c) que dela emergiram
desde os meados da década de noventa não impediram a expansão do caos
urbanístico: apenas lhe deram um verniz de legalidade.
É importante notar que os vícios da actual legislação urbanística vão além dos
efeitos concretos e perniciosos que provocam sobre o território. Valores tão
axiomáticos de um Estado de Direito, como a equidade e a justiça, são por ela
violados. O estabelecimento de um plano de ordenamento do território é um acto
normativo de extraordinário impacto económico que, nos moldes da nossa legislação
actual, produz enormes injustiças, sobretudo no que concerne às mais-valias
resultantes do processo de planeamento.
Imagine-se, a título de exemplo, que é promulgado um Plano de Ordenamento
do Território sobre um município onde existe uma acentuada procura de habitação a
par de uma moderada procura de terrenos para o exercício da agricultura, como tantos
da faixa litoral entre Setúbal e Braga. À partida, os empresários agrícolas encontram-
se dispostos a adquirir terrenos para cultivo por um valor máximo de 5.000 € por
hectare, montante acima do qual a aquisição condenaria à insolvência os seus
empreendimentos agrícolas. Os empresários da construção civil, em contrapartida,
estão dispostos a adquirir quaisquer terrenos urbanizáveis por 1.000.000 € por
hectare.
Entra então em vigor um novo Plano de Ordenamento do Território que passa
a estabelecer quatro categorias de uso do solo, além das manchas de uso urbano já
consolidadas: urbanizável, agrícola e reserva natural integral. Como resultado,
verifica-se que:
• Os proprietários de solos agrícolas entretanto classificados pelo POT como
agrícolas vêem o seu património manter o valor de mercado que já
detinha;
• Os proprietários de solos agrícolas reclassificados como “urbanizáveis”
vêem os seus terrenos valorizarem-se a 20.000%.
• Os proprietários de solos agrícolas reclassificados como “reserva natural
integral” vêem os seus terrenos perderem qualquer valor de mercado e
todo o valor de uso.
Estamos, pois, perante um exemplo extremo do carácter discriminatório do
plano de ordenamento, que viola o princípio da igualdade de tratamento do Estado a
todos os cidadãos. Uns terratenentes ganharam uma “fortuna trazida pelo vento”,
outros ficaram indiferentes, outros ainda foram virtualmente expropriados. Toda esta
iniquidade é legitimada pela nossa legislação actual. O mecanismo das perequações
actualmente em vigor não resolve este problema.
Especial atenção merece, no seio deste exemplo, a questão das tais “fortunas
trazidas pelo vento” ou, melhor dizendo, das mais-valias geradas pela promulgação de
planos de ordenamento do território. Segundo a ordem jurídica vigente em Portugal,
as mais-valias urbanísticas (o incremento do valor que um solo rústico ganha quando
é reclassificado de urbanizável) pertencem ao proprietário do imóvel afectado. Dada a
enorme magnitude destas mais-valias um proprietário cujo terreno agrícola tenha sido
reclassificado de urbanizável em sede de POT (no caso em epígrafe, 995.000 € por
hectare), ou cujo loteamento e urbanização tenham sido aprovados durante o período
de suspensão de PDM, goza o privilégio de ter tido a Administração Pública a
instantaneamente multiplicar por dezenas ou centenas o valor do seu património
imobiliário. É imoral que a legislação conceda a um proprietário de solos agro-
florestais semelhante fortuna imerecida, que terá de ser desembolsada por toda a
sociedade. Merece a pena citar o seguinte trecho de Stuart Mill (Principles of
Political Economy [1848], livro 5, capítulo II):
“Suponhamos que existe um género de renda que tende a aumentar de valor sem qualquer sacrifício
ou esforço da parte dos seus proprietários: esses proprietários constituem uma classe que enriquece
passivamente às custas da restante comunidade. Neste caso o Estado não estaria a violar o princípio
da propriedade privada se recapturasse este incremento de riqueza à medida que ele vai surgindo.
Isto não constituiria propriamente uma expropriação, mas apenas uma canalização em benefício da
sociedade da riqueza criada pelas circunstâncias colectivas, em lugar de a deixar tornar-se o tesouro
imerecido de uma classe particular de cidadãos. Ora, este é justamente o caso da renda do solo [na
qual se incluem as mais-valias urbanísticas].”
A filosofia de Stuart Mill, enriquecida pelo pensamento económico de Henry
George no que concerne às mais-valias urbanísticas, informou e orientou a legislação
urbanística de todo o Ocidente desde os meados do século XX. Em Portugal isto ainda
não sucede, com os nefastos resultados sociais, económicos e ambientais que
sobejamente conhecemos.
EXPR: Como acabar com a proliferação de excepções aos planos
urbanísticos?
PBA: Quase todas as excepções aos planos que os proprietários de solos agro-
florestais procuram obter para os seus terrenos consistem ou na inclusão das suas
propriedades em perímetros urbanizáveis, ou, no caso de essas propriedades já serem
urbanizáveis de antemão, no aumento dos índices de construção que lhes haviam sido
atribuídos. Em ambos os casos o que sucede, caso vinguem as suas intenções, é que o
mero acto administrativo que torna os solos urbanizáveis ou aumenta os seus índices
construtivos faz aumentar automaticamente dezenas ou centenas de vezes o valor
inicial do imóvel. Por outras palavras, graças a um mero acto administrativo o
terratenente vê aumentar copiosamente o valor do seu património imobiliário, ou
seja, recebe uma enorme mais-valia urbanística. Se, à semelhança da legislação dos
restantes países ocidentais, a nossa Lei consagrasse de modo claro e inequívoco a
recaptura pública desta mais-valia (por exemplo, levando o proprietário a pagar ao
Estado uma taxa idêntica à valorização que o terreno sofreu pela excepção
reclassificatória), os terratenentes perderiam o afã de lotear os seus terrenos.
A procura de excepções aos planos é somente motivada pela ânsia dos privados
capturarem as mais-valias urbanísticas que, imoralmente, a nossa Lei lhes concede.
Todos os proprietários de solos agro-florestais querem que o seu terreno passe a ser
urbanizável, pois sabem que no instante em que o alvará de loteamento lhes for
concedido o seu património passa a valer centenas de vezes mais, sem qualquer risco,
esforço ou mérito da sua parte. Esta é uma situação jurídico-administrativa sem
paralelo em todo o Ocidente, e é a verdadeira causa das tremendas pressões que os
privados exercem sobre a elaboração dos PDMs de modo a tornarem loteáveis os seus
terrenos com os índices o mais elevados possíveis. Daí resulta o caos urbanístico que
nos distingue do resto da Europa, onde a Lei é bem diferente.
EXPR: Como resolver as brechas que permitem que se contorne a lei e
facilmente se transformem solos rurais em urbanos, de acordo com «as
simpatias» dos autarcas e sem qualquer planeamento?
PBA: É preciso matar a serpente no ovo. O móbil dessas tentativas de contorno
da Lei é a captura das mais-valias urbanísticas trazidas pela acção urbanística da
administração pública. Se a Lei consagrar a recaptura pelo Estado dessas mais-valias
deixa de haver a maior parte da motivação para a procura de licenciamentos
“excepcionais”. Melhor ainda seria que nem sequer houvesse necessidade de
“recapturar” as mais-valias: estas deveriam ser desde logo retidas na fonte.
Seria sobremodo benéfico para o ordenamento do território em Portugal que se
instituísse uma ordem jurídica capaz de seguir o preceito da indiferença dos
terratenentes face aos planos urbanísticos: o proprietário dos solos agro-florestais
deveria mover-se num quadro legal onde lhe seriam economicamente indiferentes as
alterações aos planos urbanísticos: se por meio da revisão destes o seu terreno
recebesse mais-valias urbanísticas, estas seriam recapturadas pelo Estado; se o seu
terreno recebesse menos-valias, estas ser-lhe-iam ressarcidas. O mesmo preceito
deveria ser aplicado às mais-valias que resultam do aumento dos índices de
construção: taxas ou indemnizações, consoante o caso, deveriam assegurar que o
proprietário não obtivesse nenhum proveito económico nem nenhum prejuízo
económico quando o seu lote visse alterado o volume de construção permitida.
EXPR: Refira um ou dois exemplos concretos que reflictam esta realidade.
PBA: Não têm faltado na imprensa nacional escândalos relacionados com a
aprovação excepcional de loteamentos, seja quanto à área afectada, seja quanto aos
elevados índices de construção concedidos. O que mais surpreende, no entanto, é que
quase todos esses escândalos tenham cobertura legal.
Um método muito empregue para viabilizar legalmente um empreendimento
urbanístico não previsto em PDM consiste em suspender este último nos termos do
Decreto-Lei nº 380/99, licenciar o empreendimento, e recolocar o Plano
processo é permitido sempre que “se verifiquem circunstâncias excepcionais
resultantes de alteração significativa das perspectivas de desenvolvimento
económico” (artigo 100º) e resulta da deliberação da assembleia municipal sob
proposta do executivo camarário, ou ainda por meio de decreto regulamentar.
Ora, nenhum PDM é dotado de uma análise exaustiva do seu impacto
económico, quantificando rigorosamente os efeitos que terá sobre o preço dos solos e
dos edifícios, discriminando quem irá beneficiar do plano, quanto irá ganhar, e quem
irá pagar os custo finais desse mesmo plano. Isto é tanto mais surpreendente quanto é
sabido que poucas acções da Administração Pública influenciam mais os custos do
imobiliário do que os planos territoriais. Sendo assim, como é possível analisar
objectivamente a “excepcionalidade” das circunstâncias que rodeiam os
empreendimentos? Está-se no domínio do puro julgamento subjectivo e arbitrário,
numa decisão que envolve a concessão de fortunas “trazidas pelo vento”. Como pode
ser que numa assembleia municipal, ou num gabinete autárquico, se possa decidir a
valorização instantânea de um hectare de terreno em centenas de milhares de contos,
sem qualquer mérito do proprietário?
EXPR: Como equaciona a recaptura das mais valias urbanísticas? Acha que o Estado deve ter a prerrogativa de lotear o solo ou esta deve estar nas mãos dos privados?
PBA: Importa distinguir três etapas da expansão urbana: o loteamento, a
urbanização e a edificação.
• O loteamento é uma mera operação jurídico-administrativa em que um
terreno agrícola é repartido em lotes privados para construção, e certas
parcelas desse terreno são reservadas para as acessibilidades e outras infra-
estruturas comunitárias. É por via do loteamento que o terratenente realiza
as mais-valias urbanísticas, mesmo sem ter realizado qualquer obra física.
• A infra-estruturação é o processo de desenhar e implantar a malha
urbana, no que concerne a acessibilidades e infra-estruturas públicas. É
neste processo que se desenham e constroem ruas, praças, avenidas,
jardins, &c, e se decide a volumetria e os usos a autorizar em cada lote.
• A edificação é o processo de construção dos edifícios nos respectivos
lotes, em obediência aos planos de urbanização.
Sou favorável à ideia segundo a qual o loteamento deve ser uma operação
inteiramente pública, a infra-estruturação uma empreitada de obras públicas sujeita a
concurso, e a edificação um processo inteiramente privado.
É sobremodo fundamental que a Administração detenha a prerrogativa
exclusiva de lotear o solo, como tende a ser prática comum nos países mais
desenvolvidos, sendo exemplos particularmente rigorosos desta filosofia a Holanda e
a Suécia. Só dessa forma se consegue assegurar que perto de 100% das mais-valias
urbanísticas sejam utilizadas para o bem comum, e se logra vencer a pressão dos
particulares para lotear e urbanizar os seus terrenos, onde quer que eles se localizem e
independentemente das reais necessidades do colectivo.
A par deste método, que necessariamente passa pela posse pública dos terrenos
urbanizáveis, existem outros métodos mistos de parceria entre a Administração e os
particulares. Todos eles, porém, controlam de forma draconiana a recaptura de mais-
valias urbanísticas, exigindo aos loteadores particulares o pagamento de taxas e a
prestação de contrapartidas.
Actualmente, as mais-valias urbanísticas podem ser cobradas ao terratenente no
âmbito do IRS ou do IRC. Isto levanta um problema ontológico de base: deve o
Estado cobrar impostos sobre um rendimento imerecido que resultou da sua própria
acção urbanística? Será apropriado que o Estado conceda a um particular um milhão
de euros em mais-valias urbanísticas, autêntico grande prémio de lotaria (no sentido
em que não resultou do trabalho, mas da “sorte” de uma decisão político-
administrativa favorável), e depois tribute apenas 40% dessa fortuna?
EXPR: Como classifica a actuação dos autarcas e das CCDRs ?
PBA: Tal como afirmei, o acto político-administrativo de reclassificar como
“urbanizável” um terreno até aí “agro-florestal” traz ao respectivo proprietário uma
fortuna imediata, sem esforço nem risco. Ora, o autarca é um protagonista deste acto:
os seus bons ofícios são o toque de Midas que converte em ouro o património
imobiliário. As CCDRs também influem neste processo, facilitando ou impedindo a
reclassificação. Da capacidade argumentativa do terratenente e do beneplácito
daqueles decisores depende a captura, ou não, das imensas mais-valias urbanísticas. É
uma enorme fortuna “trazida pelo vento” que está em jogo, e o seu destino é jogado
largamente segundo a consciência do decisor político e administrativo.
A avaliar pelas fortunas imerecidas que o urbanismo tem gerado, e pelo caos
que tem resultado de inúmeros licenciamentos avulsos e rentabilíssimos, não posso
classificar de benéfica a actuação dos autarcas nem das CCDRs. O mesmo se pode
dizer de outros diplomas legais de instância superior que produzem as mesmas
excepções aos planos e os mesmos rendimentos.
EXPR: Em que moldes uma nova lei das Finanças locais pode corrigir o actual regime especulativo sobre o uso do solo? Há representantes da Ordem dos Arquitectos no grupo de trabalho?
PBA: A tributação do património imobiliário não pode ter como mera função
arrecadar receitas para o Estado e as Autarquias. Deve ser também um instrumento
para estimular o bom uso dos imóveis e desmotivar o seu subaproveitamento e
açambarcamento especulativo.
Se, à semelhança do que se faz nos países mais desenvolvidos, o proprietário de
um imóvel devoluto (rústico ou urbano) contribuísse com uma tributação muito
agravada, e em casos mais graves de abandono prolongado sofresse uma coima ou
visse o seu imóvel ser automaticamente chamado à posse administrativa, é certo que o
mercado imobiliário ganharia uma fluidez muito saudável. Cessariam os
açambarcamentos especulativos, os edifícios desocupados e os campos incultos
seriam colocados no mercado a baixo preço, e o subaproveitamento do território seria
desmotivado. As próprias mais-valias urbanísticas minguariam à medida que fossem
desprovidas da sua fracção especulativa.
É frequente afirmar-se que número excessivo de licenciamentos de construção
feitos nos nossos municípios resulta da sua necessidade de obter receitas por via da
cobrança de licenças e de contribuições autárquicas. Não creio que seja esse o caso: a
causa mais provável será a intensa procura de alvarás de loteamento por parte dos
terratenentes, que desse modo enriquecem, e de que maneira!, com as mais-valias
urbanísticas.
EXPR: Faz sentido continuar a alargar perímetros urbanos nos concelhos da Grande Lisboa e do Grande Porto?
PBA: Talvez nos devêssemos perguntar se se deverá forçar os portugueses que
hoje habitam os enormes e miseráveis subúrbios das nossas cidades a permanecerem
o resto das suas vidas nesse mesmo género de subúrbio, ou se se deverão criar novas
expansões urbanas condignas, espaçosas, confortáveis, vendidas a preços baixos, o
mais possível isentas de empolamentos especulativos. Se se optar por esta segunda
via, necessariamente haverá que criar novas expansões urbanas, quiçá nos moldes das
“New Tows” britânicas: cidades-jardim, de baixa densidade, resultantes de
loteamentos públicos, a preços acessíveis. O bairro lisboeta da Encarnação seguiu este
modelo, mas foi construído antes de a Lei dos Loteamentos de 1965 ter liquidado o
urbanismo em Portugal e impossibilitado a continuação desse modelo de
planeamento. Para tornar de novo exequíveis esta forma de planear é imprescindível
uma revisão profunda das nossas bases legislativas do ordenamento do território.
EXPR: Faz sentido construir de novo ou requalificar?
PBA: Parece-me fazer todo o sentido requalificar bairros de grande qualidade de
desenho e de construção; parece-me difícil requalificar bairros desprovidos de ambos
os atributos. Duvido que exista requalificação possível para Massamá, para a Tapada
das Mercês, para a Ramada, para o Cacém, para o Casal de São Marcos e todos os
seus equivalentes de Norte a Sul do país. Além disso, a robustez de muitos desses
edifícios é tão precária que dentro de poucas décadas poderão tornar-se inseguros. Na
melhor das hipóteses poder-se-ão administrar pequenos paliativos: criar jardins nas
escassas manchas de solo desocupado, instalar mobiliário urbano, &c. Essa será uma
solução conjuntural. Para uma solução estrutural será necessário, a meu ver, criar
novas expansões urbanas (as cidades-jardim que já referi) segundo os trâmites de uma
legislação urbanística que consagre a prerrogativa estatal dos loteamentos e a função
social das mais-valias urbanísticas.
EXPR: Portugal pode enfrentar um «crash» do mercado imobiliário?
PBA: Faltam-me estatísticas objectivas, imparciais e abrangentes sobre este
fenómeno. Em todo o caso, a imprensa económica nacional e internacional vem
anunciando a iminência de quebras muito acentuadas no volume de vendas, assim
como uma quebra nos preços praticados.
Em certos bairros periféricos de Lisboa, Porto e Coimbra o preço do imobiliário
desceu 20% no último ano – facto inédito na última década, durante a qual o preço
dos imóveis subiu 300% por fenómenos inteiramente especulativos.
Estima-se que existam mais de 700 mil fogos habitacionais devolutos em
Portugal, muitos dos quais novos e nunca habitados. Os seus preços mantêm-se
artificialmente elevados devido ao açambarcamento de que são alvo. No dia em que o
nosso país aplicar coimas à retenção de imóveis sem uso – tal como se faz em quase
toda a Europa ocidental, o mercado imobiliário ver-se-á obrigado a baixar muito
significativamente os preços para conseguir escoar com rapidez o excesso de oferta.
EXPR: De quem é a responsabilidade do caos urbanístico dos últimos 30 anos?
PBA: De todos os políticos governamentais e autárquicos que sobre a questão
absolutamente axiomática que é a recaptura das mais-valias ou cultivaram a
ignorância, ou cultivaram o silêncio, deixando crescer um caos urbanístico muitíssimo
rentável para alguns promotores e muito prejudicial para toda a restante sociedade.
Este problema afecta-nos gravemente desde que foi promulgada a Lei dos
Loteamentos (D.L. 46673) de 1965, mas nunca foi discutido em profundidade na
Assembleia da República, o que é insólito.
A questão das mais-valias urbanísticas tem sido profundamente estudada por toda
a Europa desde os finais do século XIX, posto que é o busílis económico de toda a
problemática do planeamento urbano. Sem recaptura das mais-valias urbanísticas o
urbanismo não passa de uma subtil guerra hobbesiana pela exploração de solos
urbanizáveis. Em todos os países civilizados esta questão mereceu a mais alta atenção
por parte de juristas, economistas, urbanistas e políticos, ao passo que no nosso país
tem sido marginalizada. É sintomático que nos países económica e socialmente mais
desenvolvidos (Países Baixos, países escandinavos, Reino Unido, Alemanha e
França) todas as urbanizações sejam públicas, ao passo que na generalidade dos
países do 3º Mundo sejam privadas.
Não se compreende como é que em Portugal a classe política tem tratado esta
questão como um mero fait-divers, ao mesmo tempo que deixa alguns promotores
imobiliários enriquecerem imerecidamente com as mais-valias urbanísticas que, no
fim, serão pagas por todo o colectivo. Quem sofre com esta incúria são os portugueses
que comprometem quase metade do seu orçamento familiar num crédito à habitação
que demora toda uma vida a liquidar.
Também tem sido altamente censurável a marginalização e adiamentos
sistemáticos a que foram votadas as reformas da lei dos arrendamentos e da tributação
do património imobiliário. Em ambos os domínios encontramo-nos décadas atrasados.
EXPR: Será realmente a captura privada das mais-valias urbanísticas
associadas aos loteamentos particulares a principal causa do caos urbanístico?
PBA: Podemos constatar por via sincrónica e por via diacrónica como o problema
do caos urbanístico deriva da concessão do direito de lotear aos particulares. Há, de
resto, uma ampla bibliografia nacional e estrangeira a sustentar esta tese.
Análise sincrónica: o caos urbanístico português é quantitativamente e
qualitativamente muito mais acentuado do que o existente nos restantes países
europeus. Qual a principal, a esmagadora diferença, entre o nosso sistema jurídico-
administrativo e o deles? O facto de nós não só permitirmos que sejam os
proprietários dos terrenos a loteá-los, como também a guardar para si as mais-valias
urbanísticas. Além disso, países europeus vizinhos penalizam gravemente a sub-
utilização e a retenção especulativa de imóveis, quer urbanos quer rústicos.
A título de exemplo, comparem-se vilas fronteiriças como Vilar Formoso e
Fuentes de Oñoro. Entre uma vila e outra, separadas por poucas dezenas de metros,
não difere o contexto social, nem económico, nem agrícola, mas apenas o contexto
jurídico e tributário. Do lado português existem inúmeros edifícios devolutos, um
desenho de expansões urbanas de medíocre qualidade, e um espaço agro-florestal
derrelicto. Do lado espanhol vemos a maioria dos edifícios sendo utilizados e bem
mantidos, uma área urbana com um traçado bem ordenado, e um espaço agro-florestal
cultivado.
Análise diacrónica: comparemos por fotografia aérea os "anéis de
crescimento" das expansões urbanas portuguesas antes e depois de 1965, ano em que
os loteamentos e urbanizações particulares começaram a ser autorizados em Portugal,
justamente ao contrário de tudo o que se vinha legislando no resto da Europa.
Comparemos a qualidade da malha urbana construída quando o Estado era a única
entidade autorizada a urbanizar (analisem-se os "ensanches" de Ressano Garcia e de
Duarte Pacheco, por exemplo) e a construída depois de as expansões urbanas terem
sido entregues aos promotores particulares. Comparemos as urbanizações estatais dos
anos 30, 40, e 50 com as urbanizações privadas que se vêm fazendo desde os anos 60
até hoje. O que as faz tão diferentes? As legislações que amparavam um e outro.
O problema dos loteamentos vai além da simples esfera urbanística. Da foz do
Lima à foz do Sado, basta à Administração Pública autorizar o loteamento de 4 ou 5
hectares para enriquecer instantaneamente o respectivo proprietário em até mais de
um milhão de contos. Rendimentos desta natureza e desta magnitude, que não
resultam do trabalho e são pagos com o esforço financeiro de toda a sociedade,
corrompem a moral pública, as instituições administrativas e todo o
empreendedorismo económico. Todo este imenso capital é transferido para as mãos
de agentes político-administrativos que não produzem qualquer bem ou serviço.
Por fim, “last but not least”, importa referir que o facto de o nosso Estado não
controlar as mais-valias tem um custo directo para todos os que adquirem habitação.
Em média, estas mais-valias representam até 50% do preço do edifício final, no
contexto que vivemos. Se o Estado retivesse as mais-valias na fonte e promovesse a
sua redução, essas mais-valias reduzir-se-iam para 15% ou menos do preço do
edifício. Por outras palavras: a habitação em Portugal poderia custar menos 35% - um
montante nada despiciendo para o orçamento familiar dos portugueses. Um estudo
que avaliasse o efeito desse cenário sobre o consumo de bens não-imobiliários talvez
augurasse um futuro muito mais próspero.
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